Como a Propriedade Intelectual Enfrenta os Desafios da Inteligência Artificial

A inovação avança com as máquinas, mas o direito ainda caminha para reconhecer quem realmente cria.
propriedade intelectual

A propriedade intelectual, tal como concebida historicamente, sempre buscou garantir o equilíbrio entre o incentivo à criatividade humana e a proteção jurídica dos frutos dessa criatividade. No Brasil, a Lei nº 9.610/1998 — conhecida como Lei dos Direitos Autorais (LDA) — é o principal instrumento normativo que assegura os direitos do autor, tratando-se de um direito personalíssimo e constitucional, com previsão expressa no art. 5º, inciso XXVII, da Constituição Federal.

Esse regime, entretanto, está sendo tensionado por um novo agente criador: a Inteligência Artificial (IA). A chamada Revolução Industrial 4.0 inaugurou um cenário no qual sistemas computacionais não apenas executam tarefas automatizadas, mas são capazes de gerar criações originais — textos, imagens, composições musicais e até obras técnicas — de forma autônoma, a partir de dados e algoritmos. Surge, assim, a pergunta central: é possível atribuir proteção jurídica a obras que não têm origem humana direta?

A Lei de Direitos Autorais brasileira, em seu art. 11, é clara ao definir o autor como “a pessoa física criadora de obra intelectual”. Isso exclui, por princípio, qualquer possibilidade de que uma IA possa ser considerada autora. Essa rigidez conceitual cria uma barreira normativa diante da realidade tecnológica, gerando uma lacuna jurídica para obras geradas por máquinas.

Essa lacuna não é apenas teórica. Em termos práticos, compromete a segurança jurídica dos desenvolvedores, usuários e investidores que atuam com sistemas baseados em IA. Afinal, obras sem proteção são obras vulneráveis à cópia e à exploração desautorizada, desincentivando a inovação.

O desafio da regulamentação de criações não humanas tem sido discutido no plano internacional. Jurisdições como a do Reino Unido, por exemplo, adotam um modelo em que o titular dos direitos em obras geradas por computador é aquele que tomou as providências necessárias para sua criação (Section 9(3) do Copyright, Designs and Patents Act 1988). No Brasil, contudo, ainda predomina o entendimento de que a criação exige subjetividade e intencionalidade humanas, o que impede o reconhecimento de titularidade à IA.

Como reforça o texto doutrinário de José Graça Aranha, “o atual marco jurídico brasileiro, calcado em um modelo antropocêntrico, não oferece respostas adequadas para o fenômeno da criação algorítmica, exigindo, portanto, uma reformulação conceitual e normativa para que se possa garantir, de maneira adequada, os efeitos jurídicos decorrentes da inovação digital” (ARANHA, José Graça. Propriedade Intelectual e Inteligência Artificial: Desafios normativos contemporâneos. Ed. Lumen Juris, 2022, p. 28).

É importante compreender que a proteção da propriedade intelectual vai além do interesse individual do autor: ela possui uma função social, voltada à promoção do desenvolvimento econômico, científico e cultural. Assim, negar a proteção às criações por IA pode significar não apenas a exclusão de um agente inovador do sistema jurídico, mas também o bloqueio ao avanço de setores estratégicos da economia contemporânea.

Vale destacar que o ordenamento jurídico não é estático. A própria evolução da propriedade intelectual ao longo das revoluções industriais comprova sua capacidade de adaptação: da proteção a técnicas agrícolas, na Revolução Agrícola, passando pela proteção a processos fabris na Revolução Industrial, até a regulamentação de softwares e bancos de dados na era digital. Diante da Revolução 4.0, é necessário que o Direito mais uma vez se molde à realidade tecnológica, para garantir não apenas segurança jurídica, mas também a continuidade do progresso.

Essa adaptação não implica, necessariamente, o reconhecimento da IA como sujeito de direito. A doutrina majoritária entende que a personalidade jurídica da IA não se justifica, mas isso não impede que se estabeleça um regime de atribuição de direitos patrimoniais ao humano responsável pela concepção, uso ou treinamento do sistema. Como propõe Aranha, “o reconhecimento jurídico das obras geradas por IA pode se dar por meio da atribuição de titularidade à pessoa natural ou jurídica que esteja no centro do processo criativo, ainda que de modo indireto” (ARANHA, 2022, p. 40).

Até que haja avanço legislativo, medidas preventivas e contratuais são fundamentais. Recomenda-se, por exemplo, a formalização de cláusulas claras em contratos de desenvolvimento ou uso de IA, determinando quem será o titular dos direitos sobre os resultados produzidos. Da mesma forma, o registro das obras com a descrição técnica do processo criativo pode servir como prova de anterioridade e reforçar a posição jurídica de quem pretende exercer direitos patrimoniais sobre a criação.

Outro ponto crucial é a necessidade de interlocução com os órgãos de registro e com o Poder Legislativo, a fim de propor uma atualização normativa compatível com o contexto da inovação tecnológica. A criação de um marco regulatório específico para obras geradas por IA pode ser o caminho para harmonizar os interesses dos autores, do mercado e da coletividade.

Por fim, destaca-se o papel do advogado como agente de transformação nesse processo. É imprescindível que o profissional que atua com propriedade intelectual compreenda os fundamentos técnicos da IA, os riscos jurídicos associados e os caminhos estratégicos para garantir proteção jurídica efetiva aos seus clientes, seja por meio de pareceres, elaboração contratual, registro ou atuação contenciosa.

O futuro da propriedade intelectual não se limita ao humano. Ele também se constrói com algoritmos, dados, redes neurais e sistemas que, embora não sejam sujeitos de direito, produzem valor — valor esse que merece ser reconhecido, protegido e regulado. E cabe ao Direito acompanhar, com responsabilidade e inteligência, esse novo paradigma criativo.

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